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  • Foto do escritorLeonardo Maia

A psicanálise já estaria obsoleta?


Como a Psicanálise pode lidar com as prescrições que "chapam" os nossos pacientes?

Psicanálise e Psiquiatria tem alguma proximidade?"

A "medicina se constituiu como uma arte muda"?

"O futuro da mediciana seria a Psicanálise"?

A clínica psicanalítica não escapa do fato que regularmente acolhe pacientes sob o efeito de medicamentos psicotrópicos, alguns destes pacientes mencionam que inclusive já possuem diagnósticos bem específico como os de Transtorno de Personalidade Borderline ou Transtornos Psicóticos, muito embora eles não recebam explicação alguma sobre o que isto realmente significa. Surge, diante do sujeito, uma nova identidade posta pelo saber regimental médico com uma prescrição em mãos e a recomendação de terapia e “remédios” possivelmente para o resto da vida.


Ao mesmo tempo, psiquiatras e psicólogos queixam-se de dificuldades tanto no diagnóstico quanto no tratamento de certo grupo de pacientes, sempre com a menção que são refratários à terapia e aos fármacos, havendo necessidade de ajustes e associações frequentes.


E finalmente, o recorte específico na clínica psicanalítica sugere o esforço de uma vanguarda de pensadores como Christian Dunker, Joel Birman, Christian Hoffman, Antônio Quinet, J.A-. Miller para citar alguns, no intuito de alçarem uma reflexão mais atual sobre o tema e produção significativa de conhecimento frente ao que já foi descrito para além da rigidez das estruturas e técnicas clínicas, ditas sempre fixas e imutáveis. Nós psicanalistas assistimos ao aumento destes casos (borderline, psicoses inespecíficas e paciente medicados) e seguimos na busca de estratégias e abordagens que promovam uma escuta mais sintonizada com o contemporâneo.


Certa vez, em uma sessão, houve uma fala de uma paciente que especialmente me chamou a atenção: “É algo físico, não sei falar... preciso de alívio! O que eu me tornei?!” Esta paciente havia sido recentemente diagnostica pela psiquiatria e pela psicologia com o Transtorno de Personalidade Borderline. Ela posicionava-se também em concordância ao autodeclarar-se como alguém vivendo com este “diagnóstico” encerrado em si mesmo e sob os efeitos de neurolépticos. Apesar de pairar certa dúvida sobre o que ou quem exatamente julgava-se identificada, seu semblante era apático e ausente.


Este dito foi um golpe em minhas pressuposições clínicas causando-me uma reflexão sobre o fenômeno dos diagnósticos rápidos, do uso e consumo maciço de psicofármacos batendo à porta de nossos consultórios. Imediatamente me lembrei do drama kafkaniano sobre Gregor Samsa que, após despertar de “sonhos agitados”, dos quais não consegue se lembrar (latentes) e falar (manifestos), viu-se deitado de costas transformado em um “inseto gigantesco” (KAFKA, 1948, p.07). A partir de então experimentou o abandono, o horror e a violência especialmente dos familiares que não mais o “re-conheciam” tendo os sintomas decalcados em seu corpo seguindo para um destino pré-anunciado.


Magalhães (2001, p.12) destaca que uma das dificuldades atuais na tentativa de encontrarmos similaridades entre a psiquiatria e a psicanálise é o fato de que se particularizaram em "saberes singulares e diferentes", ou seja, o que a biologia passou a chamar de distúrbios mentais não é exatamente o que a psicanálise chamou de psique, já que “os métodos de produção de conhecimento nestes dois casos pressupõe objetos diferentes”. Afirma ainda que "a escuta na psicanálise nada mais é do que a prática do método e a produção do saber do inconsciente”.


Mesmo havendo uma justificativa epistemológica para a distinção entre estas áreas do conhecimento, vale lembrar que “antigamente a palavra curava, a palavra era efetivamente um instrumento terapêutico. Porém, ao nos debruçarmos sobre sua história, constatamos que a medicina se constituiu como muta ars (arte muda)” (CALDERONI; CALDERONI, 2002).


O jornalista Robert Whitaker, autor de Anatomy of an Epidemic (WHITAKER, 2015), ilumina a questão sobre o fato das crianças de nossa geração serem as primeiras na história da humanidade a crescerem com a “sombra das doenças mentais”, isso quando não medicadas já muito cedo. Para nossa perplexidade, este cenário é simplesmente justificado pela “metáfora” do desequilíbrio na bioquímica cerebral e a exigência de que, frente aos transtornos, seria necessário o uso de psicotrópicos, essencialmente como a insulina o é para um diabético. Esta postura é duramente criticada pelo jornalista em seu livro sendo inclusive um defensor do movimento da antipsiquiatria.


Vale relembrar a fala no Collège de médecine à La Salpetrière, onde Jacques Lacan mencionou em 1966 Michael Balint, “o médico, ao receitar, receita-se a si mesmo”, possivelmente associando esta citação ao fenômeno transferencial. Balint (1896-1970) foi um psicanalista, neuropsiquiatra e bioquímico húngaro que escreveu dentre artigos e livros a importante obra, O Médico, Seu Paciente e a Doença publicada originalmente em 1957 onde discorre sobre a relação medico e paciente (BALINT, 1984).


Por este prisma podemos supor que o fármaco, o remédio químico só torna-se substância no interior de um discurso, de um laço social que se forma deste encontro com o outro que convencionalmente deteria o saber médico. Este seria o “momentum” de uma relação que envolve autoridade, poder e submissão para que, somente depois, a droga possa ser assimilada e porque não dizer “introjetada” por uma via de administração e forma farmacêutica específicas.


Para interpelar sobre a medicalização, Whitaker (2015) busca evidências em estudos recentes feitos por alguns centros de pesquisa nos Estados Unidos. Neles fica claro que indivíduos com o diagnóstico de esquizofrenia ou depressão em tratamentos farmacológicos prolongados, apresentam uma taxa menor de recuperação em relação àqueles tratados com outras terapias (incluindo a psicanálise) ou que usaram os fármacos somente por um período curto (na crise). Se em um primeiro momento estes medicamentos causam melhora, no decorrer dos anos, criam pacientes mais vulneráveis a processos psicopatológicos crônicos devido a uma alteração na morfologia cerebral, reduzindo a capacidade natural de recuperação dos indivíduos frente aos episódios de crise ou angústia. Com o intuito terapêutico, a posteriori estas reações são tamponadas com o aporte de outros fármacos à longo termo, ou seja, riscos, custos e benefícios questionáveis. Evidentemente este modelo atual é amplamente discutido demostrando o paradoxo entre prescrições e cura repercutindo em uma crise interna na psiquiatria.


Mesmo com diversas contribuições e revisões teóricas de autores pós freudianos, o que parece ser consenso em praticamente todas as pesquisas recentes, neste destaque citado por Whitaker (2015), é que as “psicoterapias” (incluindo a psicanálise) representam uma estratégia fundamental para a recuperação de diversos parâmetros no plano de tratamento dos pacientes nos estudos. Contudo, especialmente no Brasil esta prática clínica, entendida como sinérgica, parece ainda demonstrar-se tímida, seja pelo custo seja pelo distanciamento entre saberes.


Por hora é importante citar que estes pacientes/sujeitos quando somente medicados simplesmente desaparecem da sociedade, passam muito tempo em casa, perdem o interesse nos estudos, recebem licença do trabalho, deixam de frequentar seus terapeutas, evitam falar dos seus sintomas nas relações pessoais e assim por diante.


O momento atual é de fato um período importante para o reestabelecimento do diálogo da psicanálise com estas áreas específicas da produção de conhecimento, sejam elas farmacologia e psiquiatria. Fédida (1998) afirma em um artigo que os psicanalistas “não deveriam subestimar a amplitude do fenômeno de uma generalização crescente do uso dos psicotrópicos” sendo importante ampliarmos perspectivas propondo “mais fecundamente, hipóteses renovadas de pesquisa e reflexão”, pois, se a psicanálise era antes protegida pela psiquiatria, encontra-se hoje em risco real de contestação e obsolescência.



Bibliografia:


BALINT, M. O Médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Ed. Atheneu, 1984.

CALDERONI, M. L. de M. As origens da cisão entre medicina e palavra. In: CALDERONI, D. Psicopatologia: vertentes, diálogos. Psicofamacologia, psiquiatria, psicanálise. São Paulo: Ed. Via Lettera, 2002.

FÉDIDA, P. A fala e o phármakon. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1(1):29-45, Março; 1998.

KAFKA, F. A Metamorfose. Trad. Syomara Cajado. São Paulo: Ed. Nova Época; 1948.

MAGALHÃES, M. C. R. Psicofarmacologia e psicanálise. Org. Maria Cristina Rios Magalhães. São Paulo: Ed. Escuta, 2001

WHITAKER, R. Anatomy of an Epidemic. New York: Ed. Broadway Books, 2015.

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